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Caderno de Especificações

Enquadramento Histórico

Enquadramento histórico da arte da ourivesaria

Não se sabe onde e quando o homem usou pela primeira vez os metais, nem tampouco se foi o ouro ou o cobre o primeiro a ser trabalhado (ambos têm características comuns: podem ser encontrados na natureza em estado puro, são extremamente dúcteis e maleáveis e têm cores vivas e brilho). Sabe-se sim que desde o Calcolítico (3º milénio a.C.) e em grande parte da Idade do Bronze (2º milénio a.C.) se produziam objetos laminares utilizando apenas a técnica da martelagem e do repuxado (processo esse que já exigia o conhecimento do recozimento, tratamento térmico mais baixo que o ponto de fusão, que recuperava a maleabilidade do metal antes da martelagem). No Bronze Final (1º milénio a.C. a 800 a.C.) havia já fabrico por fundição em moldes de areia, o que demonstra conhecimentos, ainda que rudimentares, da técnica da soldadura. Entre o Bronze Final e o limiar da Idade do Ferro (600 a.C.) o aumento do conhecimento do comportamento dos metais, a descoberta das ligas metálicas e o domínio das temperaturas necessárias às ligações por soldadura, permitem o aperfeiçoamento das técnicas de produção e de decoração. É aqui que aparecem dois métodos de decoração complexos e que vão marcar a história da ourivesaria ao longo dos tempos: o granulado e a filigrana. Os fios para a técnica da filigrana faziam-se cortando tiras de metal estreitas que eram, de seguida, enroladas entre placas de pedra para ficarem com uma secção circular (a fieira surge posteriormente, na época helenística e inícios da época romana, vindo facilitar muito o processo).
Os vestígios arqueológicos mais antigos que nos permitem situar as zonas do mundo onde a metalurgia do ouro e da prata era praticada e foi extraordinariamente desenvolvida levam-nos a locais como a Mesopotâmia, a Capadócia e a Anatólia ocidental no início do 3º milénio a.C.. Muito provavelmente foi a partir destes territórios que a tecnologia de trabalhar os metais nobres irradiou para outras paragens, nomeadamente para a Europa, Pérsia, India, China…

A riqueza da Península Ibérica em minérios – estanho, prata, ouro, cobre, chumbo – foi, desde cedo, motivo de atração de diversos povos. Também as comunidades indígenas se dedicaram à exploração mineira e a profissões relacionadas com a metalurgia dos metais, ainda que recorrendo a técnicas muito simples.

Sabemos que na Península Ibérica, e mais precisamente em território português, a partir do 3º milénio, floresceu uma produção de trabalhos em metais nobres, fruto da assimilação de várias influências (Bretanha, ilhas britânicas e oriente mediterrânico). A ourivesaria que surge neste período é maciça, de influência celta – braceletes e torques, mas também há peças que denotam as influências mediterrânicas, duma grande riqueza formal e decorativa, onde se situam as técnicas da filigrana e do granulado – é o caso das contas, arrecadas e pendentes. Nos últimos tempos da Idade do Ferro, as arrecadas de Laúndos, Carreço e Estela são exemplo, mais do esplendor da cor e brilho do ouro do que propriamente do desenvolvimento estético da arte, ainda extremamente rudimentar. Mas, se a nível artístico e estético o subdesenvolvimento da ourivesaria continuou a ser uma constante, assistimos, com o passar dos tempos e a nível técnico, à aquisição de novos conhecimentos (pensa-se que desde cedo os ourives ibéricos conseguiram esticar fio a martelo).



Embora haja referências, em Portugal, ao trabalho em ourivesaria (profissão de ourives) nos séculos XI e XII, elas são escassas e rareia o conhecimento de peças produzidas. O forte sentimento religioso medieval e a adaptação ao vocabulário da arquitetura românica e gótica vão marcar as peças de arte sacra deste período, não raras vezes produzidas em oficinas sob alçada dos próprios mosteiros. A aplicação de decorações filigranadas e a mestria das técnicas do repuxado, da soldadura e do cinzel são essenciais nos trabalhos produzidos.


Posteriormente (segunda metade do século XIV), e já num clima de gradual libertação da hegemonia religiosa, as oficinas de ourives instalam-se nos centros urbanos, os artífices da prata e do ouro organizam-se em Corporações (reunidas por arruamentos) e diversifica-se a sua clientela.
Até ao século XV/XVI, a ourivesaria portuguesa é influenciada por elementos de fora (com preponderância da arte francesa), com poucos recursos, sem tradição artística, sem originalidade. No século XVI a ourivesaria portuguesa afirma-se com uma gramática decorativa ao estilo do Manuelino. É nesta altura, com a fácil obtenção de matéria-prima (fruto dos Descobrimentos e conquistas, bem como da extração mineira em território português), que a ourivesaria atinge um relativo esplendor, atraindo ourives estrangeiros (franceses, flamengos e alemães) que introduzem novas técnicas, processos e formas.
No século XVII, a ourivesaria qualifica-se técnica e esteticamente, mas recorrendo a exemplos dos vizinhos espanhóis da Renascença (influência do domínio espanhol a que Portugal esteve sujeito de 1580 a 1640). Marcando a transição para o século XVIII, e usufruindo de uma conjuntura económica favorável (ouro e diamantes do Brasil), a ourivesaria aumenta a sua produção, sobretudo fruto das encomendas reais e da Igreja, atingindo um elevado nível técnico aliado a uma estética barroca. A filigrana desaparece dos objetos eruditos (baixelas, alfaias de culto, etc), “democratiza-se” (nas palavras de Luís Chaves) e regressa a modelos e padrões mais humildes e populares. A partir do século XIX, a filigrana adquire uma importância e um caráter autónomo no seio da ourivesaria portuguesa, particularmente no Porto, em Gondomar e na Póvoa de Lanhoso, estes dois últimos concelhos considerados, ainda hoje, os “núcleos” emblemáticos desta atividade artesanal tradicional. No entanto a partir da segunda metade do século XIX, a ourivesaria entra em crise, reflexo do abalo económico, político e social provocado pelas lutas liberais, crise esta a que não é alheia a extinção, em 1834, das estruturas tradicionais dos ofícios, responsáveis pelo ensino desta arte. A produção, a partir deste período, denota o fraco investimento feito na formação e reduz-se quase totalmente a cópias de modelos e a peças híbridas e pouco interessantes.

Fonte: Ramos, Graça, Caderno de Especificações para a certificação, 2017